eSports: panorama de uma (não tão) nova fronteira do entretenimento digital

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Antes de mais nada, e-... o quê?

Segundo a definição do dicionário inglês Oxford Advanced Learner’s Dictionary, um esporte eletrônico ou ciberesporte (mais conhecido como eSport) é “um videogame disputado entre dois ou mais participantes diante de um público de espectadores”. Embora não seja muito precisa, a definição capta a essência do fenômeno e nos ajuda a apresentar um primeiro aspecto extremamente importante: qualquer videogame (implicando ou não a simulação virtual de uma atividade esportiva tradicional) pode ser considerado um eSport.

Apenas uma pequena fração dos eSports envolve a simulação virtual de esportes tradicionais, como futebol ou basquete. O videogame League of Legends, desenvolvido pela Riot Games, é um dos “ciberesportes” mais populares do mundo, e, no entanto, não contém, em si, nenhuma alusão a práticas esportivas: trata-se de um jogo eletrônico de guerra, disputado em um mundo fantástico, em que duas equipes de personagens imaginários travam batalhas para conquistar a vitória e a glória.

O impacto dos esports

O impacto dos eSports pode ser avaliado tanto de um ponto de vista estritamente econômico como do ponto de vista das comunicações. Em termos econômicos, o faturamento do segmento deve chegar a US$ 1,38 bilhão em 2022, frente a US$ 1,11 bilhão em 2021, com um crescimento de 16,4% na comparação ano a ano, segundo o Relatório sobre o Mercado Mundial de eSport e Streaming ao Vivo em 2022, elaborado pela consultoria Newzoo.

No âmbito das comunicações, os eSports conseguem se conectar com jovens, adultos e até idosos de alto poder aquisitivo. Em razão disso, eles vêm atraindo o interesse de grandes marcas, como Louis Vuitton e Mastercard, que até recentemente permaneciam completamente alheias ao universo dos videogames. Sua capacidade de atingir um público mais amplo e variado é incrível. Em 2019, a final do campeonato mundial de League of Legends foi assistida por aproximadamente 100 milhões de pessoas, ao passo que a Superbowl da NFL, tradicional partida decisiva do campeonato de futebol americano dos Estados Unidos, teve “apenas” 98 milhões de espectadores.

Diferentemente do que acontece com os esportes tradicionais, onde ninguém é ‘dono’ do jogo em si, no universo dos videogames muitas vezes há um grande número de pessoas (físicas ou jurídicas) que detêm direitos de propriedade sobre o jogo ou seus componentes.

Os esports como videogames protegidos por pi

Para haver um eSport, é preciso haver um videogame. Isso tem implicações importantes do ponto de vista jurídico. Se entendermos que os videogames são essencialmente uma camada de software (ou motor de jogo) sobre a qual se acrescentam componentes audiovisuais, como animações, imagens, textos, efeitos sonoros e música, que podem ser objeto de proteção de PI, evidencia-se a complexidade jurídica que envolve os eSports. Sem dúvida, os direitos de autor são a categoria de direitos de propriedade intelectual mais imediatamente relevante para os videogames. No entanto, em tese, um ciberesporte pode suscitar a aplicação de direitos de PI de praticamente todas as categorias.

De uma perspectiva europeia, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), em seu Acórdão nº C-355/12 (caso Nintendo), esclareceu que os videogames “constituem material complexo que compreende não só um programa de computador mas também elementos gráficos e sonoros que [...] são protegidos, juntamente com a obra inteira, pelo direito de autor [...]”.

Como os direitos de PI são direitos de propriedade/inerentemente monopolistas, seus detentores podem, em princípio, impedir que terceiros usem o material em questão. Diferentemente do que acontece com os esportes tradicionais, onde ninguém é “dono” do jogo em si, no universo dos videogames muitas vezes há um grande número de pessoas (físicas ou jurídicas) que detêm direitos de propriedade sobre o jogo ou seus componentes: programadores, artistas, escritores, compositores e intérpretes de música, entre outros.

No caso dos videogames, os direitos de PI normalmente são detidos ou controlados por uma editora ou desenvolvedora, que os adquire para poder distribuir e explorar comercialmente o jogo. Essa exploração acontece, fundamentalmente, por meio da venda de licenças a usuários finais, cujas condições são estabelecidas pelo contrato de licença do usuário final/termos de serviço (EULA/ToS, na sigla em inglês). Nos termos desses contratos, a licença concedida pela editora é praticamente sempre restrita a usos pessoais/não comerciais. Isso nos leva ao segundo aspecto fundamental: diferentemente de um campeonato de futebol, a organização de um torneio de eSports requer, em princípio, a autorização da editora do videogame.

Os esports como ecossistemas complexos

Eis o terceiro aspecto de importância crucial: dada a presença e interação de vários atores, com seus respectivos direitos de PI, cria-se um ecossistema complexo, como se observa na Figura 1.

Essa complexidade é administrada por uma série de contratos, cada um dos quais deve “conversar” com os demais: é preciso examinar com atenção todos os fios que compõem essa trama complexa, para não haver violações dos direitos de PI de terceiros. A navegação nesse ecossistema exige cuidado especial com os aspectos discutidos a seguir.

Em primeiro lugar, cada eSport é um videogame com suas próprias regras internas, resultantes de decisões tomadas pelo desenvolvedor durante o processo de criação do jogo. Essas decisões estruturais raramente podem ser modificadas pelo usuário sem autorização. Em segundo lugar, o uso do videogame é regido por um contrato de licença, seja um EULA/ToS genérico ou uma licença concedida especificamente pela editora para a organização de determinado torneio. E, em terceiro lugar, a organização de um torneio de eSports tende a envolver diversos outros titulares de direitos de PI, tornando o ecossistema ainda mais complexo do ponto de vista da propriedade intelectual.

Os torneios de eSports podem ser organizados pela editora do videogame ou por organizadores independentes e podem ter regras (adicionais) próprias. Qualquer violação das regras do evento pode acarretar a violação dos direitos de PI da editora e/ou do organizador independente. Os torneios podem ser competições isoladas ou fazer parte de campeonatos realizados no âmbito de uma liga, envolvendo ainda mais regras.

Os organizadores do torneio (sejam eles editoras ou organizadores independentes) monetizarão seus direitos por meio de contratos de patrocínio firmados com marcas (que também gozam de proteção de direitos de propriedade intelectual), assim como pela concessão de direitos de radiodifusão/streaming, em geral exclusivos, a plataformas de distribuição de conteúdo (como Twitch ou YouTube). Outras fontes de receita são a venda de ingressos para eventos presenciais e a comercialização de todo tipo de artigos físicos ou digitais de merchandising (também protegidos por direitos de PI).

Por fim, obviamente ainda é preciso considerar os jogadores e equipes, que podem ter seus próprios contratos de patrocínio com marcas e patrocinadores de eventos. Os jogadores e equipes detêm ou controlam direitos sobre as imagens dos jogadores e dos espectadores que assistem à competição. Os espectadores muitas vezes interagem através das plataformas de streaming (que também detêm direitos de propriedade intelectual sobre suas tecnologias), eventualmente criando conteúdos que também podem gerar direitos de PI adicionais, dependendo das condições estabelecidas pelo EULA/ToS da plataforma e – na medida em que esses conteúdos incluam conteúdos do jogo – das condições estabelecidas pelo EULA/ToS da editora do videogame.

Uma questão fundamental: quem deve regulamentar os esports?

Como costuma acontecer com fenômenos novos, os eSports permanecem, em larga medida, sem regulamentação nas legislações nacionais. Por conseguinte, editoras que detêm direitos de PI encontram ampla liberdade para administrar o ecossistema dos eSports (dentro dos parâmetros estabelecidos pelo direito comum, incluindo as leis de defesa do consumidor e da livre concorrência). Do ponto de vista dessas empresas, isso é razoável, visto que normalmente cabe a elas arcar com os custos relativos ao financiamento e comercialização dos videogames. Trata-se também do arranjo mais eficiente, uma vez que ninguém conhece melhor seus produtos/serviços (e a respectiva comunidade de usuários) do que a editora. Em outras palavras, são as editoras que se encontram em melhores condições para garantir o florescimento do ecossistema dos eSports.

No entanto, alguns especialistas argumentam que, da perspectiva do mercado dos eSports, o monopólio substantivo que as editoras individuais detêm sobre seus videogames está longe de ser a solução ideal. A seu ver, o problema de deixar a gestão dos eSports inteiramente nas mãos das editoras é que seus interesses podem nem sempre coincidir com os de outros atores envolvidos no ecossistema. Para proteger os interesses e investimentos desses atores, seria preciso adotar mecanismos que contrabalançassem o poder das editoras.

Há especialistas que defendem uma intervenção reguladora do Estado, que poderia assumir duas formas: a implementação de uma regulamentação específica (variando entre uma intervenção “leve”, limitada à correção de problemas no marco regulatório existente, e uma intervenção legislativa mais abrangente), ou a inclusão dos eSports no marco regulatório aplicável aos esportes tradicionais, deixando-os, assim, sob a égide do Comitê Olímpico Internacional (COI).

Como costuma acontecer com fenômenos novos, os eSports permanecem, em larga medida, sem regulamentação nas legislações nacionais. Por conseguinte, editoras que detêm direitos de PI encontram ampla liberdade para administrar o ecossistema dos eSports.

Em abril de 2021, o COI publicou sua agenda 2020+5, em que se faz uma distinção entre os esportes virtuais (isto é, versões virtuais de esportes oficialmente reconhecidos pelo COI) e os videogames. Embora o documento reconheça a importância dos videogames, por atingirem os jovens e incentivá-los a praticar esportes, suas recomendações deixam claro que o foco do COI são os esportes virtuais, em relação aos quais se entende que haveria espaço para que as federações internacionais assumissem responsabilidades diretivas e regulatórias (recomendação nº 9). Isso exclui diversos eSports que não envolvem a simulação virtual de esportes tradicionais e precisariam ficar ao abrigo de outro regime regulatório.

Entre maio e junho de 2021, foi realizada a primeira Série Olímpica Virtual, com jogadores competindo em versões virtuais de cinco modalidades esportivas (basquete, remo, ciclismo, vela e automobilismo), sob a supervisão de suas respectivas federações internacionais.

Embora ainda não estejam definidos os papéis e as responsabilidades, em nível internacional e nacional, das federações, sua entrada em cena deve acrescentar complexidade ao ecossistema dos eSports. Por quê? Em primeiro lugar, porque será inevitável que elas imponham camadas adicionais de normas às organizações de eSports e, em segundo, porque se não forem estruturadas com cuidado, as responsabilidades diretivas e regulatórias que o COI pretende atribuir às federações podem causar atritos com as editoras de videogames.

O conflito entre a desenvolvedora/editora Blizzard Entertainment e a KeSPA (Associação Coreana de eSports, criada pelo governo da Coreia do Sul para supervisionar as práticas profissionais de eSports) indica alguns dos problemas que podem vir a acontecer. A disputa girou em torno da gestão de direitos de radiodifusão relacionados à transmissão do videogame Starcraft, da Blizzard, pela televisão. As partes acabaram fazendo um acordo (cujos termos não foram revelados), mas só depois de a Blizzard entrar na Justiça contra a KeSPA.

Fonte:
Andrea Rizzi e Francesco de Rugeriis, escritório de advocacia Andrea Rizzi & Partners, Milão, Itália, Revista da OMPI