Stogie T: hip-hop, PI e aquele jazz todo

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foto: OMPI

Em 2016, o pioneiro artista sul-africano de hip-hop Tumi Molekane, vocalista da banda Tumi and the Volume, que se desfez em 2012, lançou sua carreira solo como Stogie T. O popular rapper concedeu recentemente uma entrevista à Revista da OMPI, em que falou sobre diversos temas, como sua paixão sobre a música hip-hop, sua recente contratação pelo selo Def Jam Africa e a importância de os músicos jovens saberem como proteger e administrar seus direitos de propriedade intelectual.

Por que a música é importante para você?

A música é única forma que eu tenho de estar no mundo. Como músico, sou útil para a minha comunidade, para o meu país e para o mundo. É isso que me tira todas as manhãs da cama.

O que o fez se interessar pelo hip-hop?

Nos anos 80, quando eu era menino, o hip-hop era o tipo mais intenso de música. Para mim, o hip-hop sempre foi uma coisa muito intensa. Sem contar que eu também tenho uma certa tendência a falar rápido. Aí, um dia alguém pôs um cheque no meu bolso por eu fazer o que para mim até então era só uma curtição, e o resto, como dizem, é história.

Conte um pouco sobre o seu desenvolvimento musical.

Comecei como rapper nas ruas, com todos os meus amigos do rap. Era um grande barato, até que começou a parecer um pouco limitado demais, até que eu comecei a não encontrar ali espaço para toda a poesia que eu estava lendo, para todo o Tchaikovsky que andava me fascinando. Foi nesse momento que a palavra falada começou a me interessar mais. Mas eu também carregava esse lance comigo, essas melodias e beats de rap. As duas coisas acabaram convergindo em uma banda chamada Tumi and the Volume, que era formada por mim, atuando como artista da palavra falada, e três instrumentistas que transformavam a minha poesia em música. A gente fez uma turnê no mundo inteiro, mas, com isso, tudo o que eu tinha construído na África do Sul começou a desandar. Foi aí que eu resolvi gravar um disco solo, com algumas coisas de hip-hop clássico, para manter meu nome em evidência na cena hip-hop do meu país.

Na África do Sul, na época, você tinha de um lado a cena da música ao vivo, com sua poesia e estilos variados, e do outro a cena do hip-hop clássico. E as duas coisas jamais se misturavam. Era super frustrante, e como eu queria ser totalmente eu mesmo em todos os lugares em que estava – a sinceridade, a honestidade e a autenticidade sempre foram a alma das minhas criações –, achei que seria uma tremenda desonestidade continuar a fazer uma coisa só porque era aquilo que determinado público esperava de mim. Além disso, conforme fui ficando mais velho, minhas prioridades também mudaram, meu mundo tinha mudado, e eu queria continuar a me desenvolver como artista. Eu queria trabalhar uma variedade maior de temas e dar voz a histórias tipicamente sul-africanas. Por isso resolvi mudar o meu nome para Stogie T.

Por que Stogie T?

Eu adoro fumar charutos e stogie também quer dizer charuto (em inglês), é uma palavra que para mim reflete a ideia de fabricação artesanal, o tempo necessário para a produção de um charuto, e também a calma e o sossego necessários para se curtir um charuto. Tem tudo a ver com a maneira como eu faço arte.

Você foi contratado recentemente pelo selo Def Jam Africa. O que isso significou para você?

O Def Jam Africa é um braço do selo Def Jam Music, que tem uma história e uma presença incríveis na cena hip-hop. Assinar com o Def Jam Africa foi a realização de um sonho. Também foi um passo na direção certa para fazer a minha música atingir um público mundial.

Por que é importante que os artistas preservem seus direitos sobre suas obras criativas?

Lembro de quando eu falei para a minha mãe que eu estava precisando de dinheiro para montar um estúdio. Ela perguntou por quê, e eu lembro de explicar para ela: “O negócio é o seguinte, mãe. Imagina que eu estou lá em casa e de repente me vem uma ideia. Aí um amigo meu cria umas batidas para essa ideia. Em princípio, a ideia e as batidas são nossa propriedade. Só que se a gente procurar um sujeito para gravar a música e não tivermos dinheiro para pagá-lo, teremos que dividir a propriedade da gravação com ele. E dali a pouco vai aparecer outro sujeito na história e a gente vai ter que dividir com ele tudo o que ganhar com a música também. Você não tem o seu trabalho, mãe? Você não vai e passa várias horas lá e é remunerada por isso? Eu adoraria fazer o mesmo. Mas na minha área não é assim. O sujeito com quem eu gravo as minhas músicas quer que eu faça as coisas de outra forma, porque do meu jeito ele acha que não vai dar certo. E é por isso que o estúdio é importante para mim, para eu poder fazer as coisas do meu jeito”.

Essa ideia de independência me ensinou que eu precisava me proteger de todas as maneiras possíveis. Comecei mandando minhas letras pelo correio para mim mesmo, para provar que eu era o autor delas. E aí eu descobri que há agências arrecadadoras que defendem os direitos dos artistas e editoras musicais que podem ajudar você a ampliar o valor dos seus direitos e promover as suas obras. Aprendi tudo isso na raça mesmo.

E digo para todos os jovens de 18 anos que querem fazer rap que se eles dedicassem uma horinha do tempo deles para entender como funciona o mercado editorial de música, o que é PI, o que são royalties e quais são os direitos deles, eles estariam fazendo mais pela música deles do que passando três horas no YouTube tentando descobrir como mixar uma bateria. A tecnologia praticamente eliminou as barreiras de acesso à produção musical, deixando os músicos em uma posição vulnerável. Isso significa que é fundamental para eles fazer um bom uso de sua propriedade intelectual.

Os músicos costumam ver os selos das gravadoras como os “malvadões”. E estes, por sua vez, tendem a tratar os artistas com uma atitude de “você não tem ideia do que está falando”. Todos sairiam ganhando se os artistas soubessem falar a língua da indústria da música e tivessem um bom entendimento de seus direitos, de seu significado, do que devem fazer para protegê-los e de como podem se beneficiar deles.

Todos sairiam ganhando se os artistas soubessem falar a língua da indústria da música e tivessem um bom entendimento de seus direitos, de seu significado, do que devem fazer para protegê-los e de como podem se beneficiar deles.

O que diferencia o hip-hop sul-africano e sua evolução?

Quando surgiu na África do Sul, o hip-hop tinha suas raízes na cultura do hip-hop tradicional do Bronx. Era batida para cá, grafite para lá, muito rap, o pessoal mandando ver nas picapes, e a ideia de autoconhecimento e envolvimento da comunidade. Esse é o hip-hop que você encontra hoje na Cidade do Cabo.

Ao mesmo tempo, o hip-hop que surgiu em Joanesburgo tinha uma levada comercial mais próxima do kwaito, que era o principal gênero musical da época. Era um reflexo do novo espírito sul-africano, marcado pela experiência dos subúrbios negros, que começavam a emergir das sombras do passado. Os caras que faziam música no dialeto local foram os que se tornaram os grandes nomes de sucesso. E começaram a marginalizar os artistas do hip-hop suburbano tradicional, que cantavam em inglês, que a maioria das pessoas não entendia. Mas o kwaito era rejeitado, pelo menos nos espaços do hip-hop tradicional. A cena hip-hop é tremendamente elitista. E, lembre-se, na época era tudo muito recente, tudo muito novo, tinha um lance meio que de culto secreto para nós.

Eu curtia tanto lá como cá, íamos a todos os clubes juntos e eu via como alguns artistas se bandeavam para um lado ou para o outro, conforme a dinâmica da economia da fome. Foi uma experiência interessante, da perspectiva de como é importante você ser autêntico, de como você precisa segurar a onda e ser quem você é, independentemente do que está acontecendo à sua volta. Também me mostrou que o que aqueles caras estavam fazendo tinha valor. Já a questão de haver um som hip-hop tipicamente sul-africano é mais polêmica, inclusive há uma grande discussão sobre isso agora. É o amapiano? É o kwaito? A gente vai criando esses sons e aí cada um acha que esse ou aquele é que é o verdadeiro hip-hop
sul-africano. Será que a gente não pode simplesmente aceitar que é assim que as coisas vão evoluindo?

Mas, para mim, se o som é bom e tem quem goste, está valendo. O pessoal esquece que hip-hop é música e que é um reflexo das pessoas que se envolvem na criação dessa música. O hip-hop atrai jovens no mundo inteiro. É feito uma religião, no sentido de que cada um põe nele os seus próprios valores. O hip-hop do Japão tem um estilo próprio. E é a mesma coisa na África ou na África do Sul, porque as pessoas querem que o hip-hop reflita quem elas são. As pessoas querem fazer rap na língua delas, querem que tenha a ver com a música indígena. E não tem nada de errado nisso.

Qual foi o ponto alto na sua carreira?

Ah, isso varia, mas acho que agora é simplesmente o fato de eu ainda estar podendo fazer hip-hop e ter feito a mudança para Stogie T. Até hoje eu me pergunto como foi que a gente conseguiu fazer isso.

Quais são os grandes desafios que você enfrenta hoje como artista?

Isso depende muito do contexto, mas, de modo geral, o desafio é que as pessoas levem você a sério, é ser capaz de, mesmo quando de repente eu faço uma canção que não era o que as pessoas estavam esperando, continuar sendo visto como um rapper inteligente, alguém com uma visão de mundo e que é interessante porque faz essas “outras” coisas.

Que tipo de evolução você deseja para o hip-hop?

Eu gostaria que houvesse mais espaço para vozes de fora do hip-hop tradicional, para que a gente tivesse um olhar mais global sobre o gênero.

O streaming é como um cartão de visitas, um jeito de as pessoas conhecerem a sua música, mas a sua renda mesmo vem de outros canais.

Os serviços de streaming têm tido um impacto positivo para os artistas?

No hip-hop a gente sempre foi fã de novas tecnologias. Não faz muito tempo, na África do Sul, antes de o streaming aparecer, os próprios artistas deixavam que as suas músicas fossem colocadas de graça na internet. Era uma estratégia para que as pessoas tivessem acesso às músicas, porque isso acabava criando fontes de renda.

Atualmente, como artista, se você faz uma turnê e mostra para uma marca tal que o site com o download gratuito das suas músicas está atraindo milhares de visitas, é bem possível fechar uma parceria com essa marca. Esses canais abrem novas fontes de renda. Aí você olha para as plataformas de streaming e vê que elas pagam um valor irrisório para todo mundo e aquilo nunca vai ser a sua principal fonte de renda. O streaming é como um cartão de visitas, um jeito de as pessoas conhecerem a sua música, mas a sua renda mesmo vem de outros canais.

Há um aspecto negativo no streaming?

O meu problema com as plataformas de streaming é que elas não levam em conta os diferentes públicos e mercados, não fazem distinção entre um artista popular, cujos (milhões de) fãs estão dispostos a pagar no máximo dois centavos para escutar suas músicas, e um músico de jazz, cujos fãs são em menor número, mas estão dispostos a pagar dois dólares para escutar suas canções. Do jeito que a coisa é feita atualmente, o músico de jazz não tem como se beneficiar do streaming.

O meu problema com o streaming é que ele não leva em conta os diferentes públicos e mercados.

Qual foi a inspiração para os seus álbuns The Empire of Sheep e Yeah?

O Empire of Sheep é uma reflexão sobre como eu vejo a África do Sul hoje. Infelizmente, como acontece em tantos outros lugares do mundo, a gente está em uma situação em que ter seguidores é mais importante do que ter líderes.

De onde vem a sua inspiração?

Às vezes você tem que se desafiar, tem que se obrigar a olhar para uma situação e questionar se não dá para pintá-la de outro jeito. A maior fonte de inspiração, no momento, é entender essa pandemia maluca da qual a gente está saindo e sintetizar essa experiência em uma série de canções.

Que mensagem você gostaria de transmitir para artistas jovens e iniciantes?

Como artista, é importante que você tenha um lugar onde possa escutar a si mesmo, e onde possa entender adequadamente qual é o sentido da sua música. Hoje em dia é muito fácil pegar um celular e sair espalhando a sua voz por aí. E isso é fantástico. Mas você não tem um lugar em que possa pôr experimentalmente as suas ideias para rodar e obter reações sinceras. É importante se cercar de pessoas que sejam francas com você, que digam realmente o que pensam do que você está fazendo e ajudem você a encontrar o ângulo certo para a sua música e a sua mensagem.

Fonte:
Catherine Jewell, Divisão de Informações e Comunicação Digital e Edward Harris, Divisão de Imprensa e Redes Sociais, OMPI